domingo, 1 de maio de 2016

Dois-de-ouro

            É sabido, comumente, que os apelidos são oriundos pelo comportamento das pessoas, por suas características físicas, por outra qualquer situação inusitada ou hilariante.
            O que se vê hoje, é que essa prática de botar apelido quase não mais existe. Deve-se (acredito) aos novos tempos: é só computador, jogos eletrônicos, muita individualidade, frieza e menos emoções.
            Quando criança, lá pras bandas de Cajazeiras, tinha um senhor, prestes a se aposentar pela prefeitura dessa cidade, na condição de Guarda Municipal, cuja incumbência funcional era vigiar tenazmente o Grupo Escolar Monsenhor Milanez. Não sei porque cargas d’águas lhe aplicaram o apelido de “Dois-de-ouro”. Por certo, devido o seu fascínio que detinha de jogar um divertido carteado.
            Essa figura parecia uma autoridade constituída (a boa autoridade). Ou melhor: se sentia como autoridade o fosse, enfronhado em sua farda de caque com uma fita verde vertical na calça, sapatos pretos já bem desgastados (ao estilo vulcabrás), quepe ostentando a insígnia da edilidade municipal. Completando a sua indumentária, o inseparável cacetete, que o conduzia na cintura como uma verdadeira arma de fogo.
            Ademais, movia-se desajeitadamente como se estivesse desconjuntado. Baixinho, magro, pele tostada pelo sol causticante do sofrido sertão.
            Naquela época se curtia uma peladinha. O egoísmo e a ânsia de vencer uma partida era apenas um detalhe. Longe, ainda, dessa roda viva atual de um sistema competitivo, louco e destruidor – totalmente robotizado.
            Foi nesse cenário bucólico, utilizando de nossas travessuras para chamá-lo de “Dois-de-ouro”. Era um deus-nos-acuda. E quanto mais se raivecia o apelido pegava.
            -Tenho vontade de matá-los – vociferava.
            Ante o potencial de nitroglicerina do nosso guarda, esbravejava numa nostalgia da pornochanchada, com toda carga de palavrões. Cada vez que gritávamos “Dois-de-ouro”, isso provocava um arriscado rastilho de pólvora.
            Desapercebidamente, um belo dia, fui apanhado por ele. Formou-se o bafafá, e o indefectível “Dois-de-ouro” não quis conversa.
            -Seu guarda, juro que só queria brincar.
            Retrucando-me:
            -Vou lhe fazer em picadinhos!
            Uma “justa vingança”, como se houvesse vingança justa, sacolejando-me, de um lado para o outro, para cima e para baixo, o suor me escorria em bicos pelo rosto, depois me agachei e consegui escapar de suas garras.
            Sob ameaça de botar a boca no trombone, após vê-lo tomando banho (completamente nu) debaixo da caixa d’água do educandário, observei que o mesmo detinha uma deformação em seus testículos (soco escrotal), esbaforiu:
            -Seu moleque cabeludo!
            -Peraí... Vô te pegar, seu filho da...!
             A partir daí me dei conta de algo: tenho procurado fazer o bem, não sei se faço, mas me esforço, mesmo diante de certas brincadeiras.
            E mais: quando vejo as praças, as escolas, os logradouros literalmente abandonados e/ou pichados, sinto nostalgia do guarda “Dois-de-ouro” para defender, de forma intransigente, o nosso patrimônio público.


                                                                                                                            12/04/2008

           

            

Nenhum comentário:

Postar um comentário