quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Bolsa cadeia

 

            No carro. Não conheço lugar melhor para escutar música. Com o ingrediente que você não tem ninguém para aporrinhá-lo. Naquele friozinho do ar condicionado. Nessa atmosfera, ao ligar o rádio na busca de uma boa programação musical, fui surpreendido com a voz do radialista inteligente e irreverente chamado Mução.

            Ele é um verdadeiro paidegua pra fazer rir. De sotaque e vocabulário bem nordestino. Fã das fuleragens. A sua brincadeira perturba, o seu humor é zombeteiro, e ainda tem o mérito de correr o risco de um processo judicial por calúnia e difamação. Escafedendo-se sempre com base naquela tese que “Todo crime é pecado, mas nem todo pecado é crime”.

            Certa feita, ouvi de Nizan Guanaes, um dos maiores publicitários brasileiros, uma frase que é original à beça: “Comunicação não é o que a gente diz, e sim o que os outros entendem”.  O personagem Mução, indiscutivelmente, detém esse talento nato no comando de sua festa radiofônica – esfuziante e libidinosa.

            Pode-se até não concordar com o seu modo de agir, no entanto, é difícil não reconhecer a sua empatia com o público ouvinte, que bola de rir com as suas traquinagens.

            Triiiiim!!! Toca o telefone na residência de dona Jandira, e passo a ouvir Mução, com palavrório fanhoso, dando início (perdão, por acaso, o texto não ter sido fiel ao áudio) a seguinte pegadinha:

            - Alô, aqui é um funcionário do governo federal.

            - Pois não!

            - A senhora concorda com a superlotação das prisões?

            - Claro que não.

            - Muito bem. Gostaria de lhe dizer que a senhora foi sorteada pelo programa “Bolsa Cadeia”. Ou seja: estou aqui com uma relação de vários presos, que vai desde ladrão de carteira, passando por sequestradores, estelionatos, assaltantes de banco e principalmente àqueles condenados pelo famoso 171 do nosso Código Penal. Logo, diga-me quantos condenados eu devo enviar para a sua residência. Em troca, o Governo lhe pagará um salário igual à “Bolsa Família”, para cada preso recebido e alojado.

            - Oxente! O senhor tá doido? Eu não tenho espaço aqui em casa, e mesmo se tivesse, eu não aceitaria.

            - Se não tiver, não há problema. Acomode-os no seu quintal.

            Pense num muído! Por um bom tempo, ficou a lengalenga dessa conversa telefônica: “Aceite, não aceito; aceite, não aceito”.

            No fim, Mução, com a verborragia irrefreável e na maciota, sentenciou:                       

            - Em razão da senhora não abraçar o tal programa social, eu vou ter que chamá-la pelo apelido de... “bisaco!”.

            Assim, numa baita bronca, dona Jandira encerrou o diálogo. Mandou-o tomar naquele canto e desligou o telefone.

 

                                                   LINCOLN CARTAXO DE LIRA

                                                    Advogado, administrador e escritor

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Convidado trapalhão

 Se você participou de festa de formatura no interior, lá pelos idos dos anos setenta, vai se lembrar. Era muito comum convidar um parente para ser paraninfo nesse tipo de solenidade, com direito a retribuir, como presente, o anel de formatura e ter que dançar a tradicional valsa. 

            Assim, nessa toada, é que fui convidado pela minha tia Marly Cartaxo a ir a Cajazeiras, eu já morando em João Pessoa, para participar desse evento. Sendo informado, logo que cheguei, tintim por tintim, de toda a cerimônia em volta da grande festa de conclusão do seu curso de nível médio (pedagogia) realizar-se à noite. 

            Neste meio tempo, procurei visitar os velhos amigos pela cidade. Conversa vai, conversa vem, ou seja, molhando as palavras (num bar) e, por incrível que pareça e nada que se pareça é incrível, não é que me esqueci do meu compromisso para tal festa. 

            Haja todo mundo a me procurar. Depois de muita, mas muita busca fui localizado. Ora, foi um deus nos acuda. “Tenho vontade de matá-lo!”. Vociferou minha tia concluinte. Pelo jeito, os bons modos, foram “pro brejo”. Fosse hoje, sugeria contratar um “personal trainer” para controlar a sua língua. 

            “Oxente! O que foi que aconteceu? Mas que diabo fiz, tia? Ué, mas já está na hora?” - manifestei. Na época, jovem, dos problemas do mundo (atraso de compromisso), este deveria estar certamente no final da fila. 

            Diante daquela cantilena – sermão moralista. “Tudo bem, tudo bem, vamos à festa”, disse-lhe. “Tudo bem uma pinóia, você vai pra casa, agora!”, retrucou-me. Depois de tomar a saideira, sem olhar para os lados, zarpei dali levitando, escoltado por um batalhão de familiares raiventos. 

            Lembro bem, e parece ter sido ontem. Após o banho e trocarem (isso mesmo!) a minha roupa, dirigimos ao local da solenidade, onde todos já se encontravam por um bom tempo. O suor me escorria em bicos pelo rosto. Permaneci ali ofegante, desejando que o tempo passasse rápido. Apesar de abrir um sorriso de orelha a orelha, apertando os olhos, deu para observar na plateia uns dizendo, em sussurros e de pé-de-ouvido, “Esse rapaz está estranho!”. 

            Sim, foi uma comédia. A rigor, uma tragédia. Porque raio eu aceitei esse convite, lastimava a todo o momento. Mas, o pior estava para acontecer: quando fomos chamados pelo cerimonial, sob flashes e holofotes, para fazer a entrega do diploma, como também, passar às mãos o anel, cadê o danado? Tudo que era bolso do paletó havia sido revirado, e nada. 

            Pense no fuzuê! Quase tive uma espécie de amnésia repentina – “blecaute mental”. Bufando e lançando-me um olhar de raiva, misto de escárnio e revolta, principalmente da arrependida tia, acabei, por fim, localizando o infeliz. 

            Certa vez José Saramago escreveu que não existe dia festivo, nós é que tornamos festivo por fazê-lo diferente. Que pesem os entreveros acho que fiz a diferença nessa bendita festa. 

 

 

                                          LINCOLN CARTAXO DE LIRA

                                           Advogado, administrador e escritor

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

A emoção da pescaria

 

            Se há duas coisas que eu gosto de fazer na vida, além das óbvias, é pescar e cuidar de jardim. Porém, das citadas, que mais me fascina (como entretenimento) é a pescaria.

            Você que fica aí nesse chororó porque tua vida tá uma porcaria. Pois saiba que vai piorar. Levante-se, pegue um caniço e vá pescar. Antídoto este para qualquer adversidade.

             A emoção da pesca esportiva está na sua qualidade e não do seu resultado a ser alcançado: quantidade de peixes. Outra: se você tem certeza de que não vai comer o peixe que fisgou, devolva-o à água, para que ele se desenvolva e se multiplique. Conciliando, deste modo, preservação com o prazer da pesca.

             Sou da época - lá em Cajazeiras, garoto peralta que fui - não existia ainda essa parafernália de equipamentos para pesca, como existe atualmente. Tudo era simples: uma vara extraída da mata dos arredores da cidade, um fio de algodão e um anzol que logo se enferrujava.

            Bons tempos aqueles. Fosse às águas do Açude Grande, do Açude de Luiz Guarda ou da Barragem Santo Antônio, nada escapava da minha argúcia e sagacidade do hábito da pesca, aliado a uma paixão inarredável pelas coisas da natureza.

            Quem teve oportunidade conhecer de perto um verdadeiro pescador – aquele que vive da atividade pesqueira, certamente vai identificá-lo pelos costumes, o quotidiano, as conversas; quase sempre simpático, comunicativo, engraçado, disposto, elétrico e meio desfocado.

            Ademais, tem fama de inventar os casos mais incríveis. Certa feita, um velho amigo, com sua fina ironia, saindo em defesa de um pescador, disse: “Qualquer um sabe dizer a verdade, mas é preciso inteligência para mentir”.  À contrário da verdade, a mentira desenvolve a imaginação: “Pô mano! Falar a verdade é fácil,  difícil é mentir bem, como pescador”.        

            Começar o dia vendo a beleza do mar da praia de Lucena, sempre é um abre-te-sesamo. Um sussurro aqui, uma insinuação ali dos banhistas, não me incomoda se terei ou não êxito com minha pescaria. Pois “somos o que amamos”, é uma expressão que está incluída na fraseologia de Santo Agostinho.

 

 

 

                                                    LINCOLN CARTAXO DE LIRA

           

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

A ideia da morte

 

            Há poucos dias perdi um ente querido, e, na capela onde ele estava sendo velado, presenciei um jovem padre lhe prestando as últimas pregações religiosas.

            Fiquei comovido: com seu olhar, calmo, na mais pura calma como se pudesse controlar o tempo. Um mix de pensamentos, reflexões pessoais e sabedorias bíblicas, ele nos disse que vivemos uma vida na qual a morte é negada. Onde, ainda, em pleno século XXI, a morte é um sentimento que a maioria das pessoas não pode suportar. Consciente ou inconscientemente afasta a ideia da morte. É como negar (estupidamente) o fato de que todos os homens e todas as mulheres são mortais.

            Diante desse realismo dogmático - nada de surpresas e obviedades - afirmava o reverendo: “Para tudo há o tempo certo, inclusive tempo para nascer e tempo para morrer”. E completa: “Jamais pronuncie, nem por brincadeira: ‘Eu quero morrer’; ‘Não quero mais viver!’”.

            É grave miopia pensar diferente. Pois, nossa maior riqueza é a vida, e como ela, o amor e a presença das pessoas queridas ao nosso redor. Quem vive chamando a morte vai, também, pouco a pouco, perdendo o gosto pela vida, antecipando, assim, a sua própria destruição.

            Ora, vejam só. Quando eu era guri fechava os olhos à noite e imaginava o mundo continuando a existir para sempre. Imaginava, com completo terror, o mundo continuava para sempre e sempre... sem a minha presença. Até hoje guardo essa sensação dos cabelos da nuca arrepiados.

            Depois, já adolescente, por favor, Deus, eu rezava então, sei que não pode afastar a morte. Mas não pode dar um jeitinho para eu deixar de pensar nela? Assim, em minha cabeça, era a pergunta chamando por uma resposta, quiçá desconcertante ou que beira o grotesco.

            A verdade, viver é correr risco, a cada instante. Para vencer, é preciso ousadia, determinação, espírito de aventura e coragem para enfrentar os maus tempos e os ventos desfavoráveis. Quanto à morte, não vamos chegar ao extremo de querer deleitar-se, mas encará-la com naturalidade, sem medo, como um processo normal do ciclo da vida.

            Ah! Ia esquecendo! Para terminar, cai como uma luva a citação de Ovídio: “Tudo em nós é mortal, menos os bens do espírito e da inteligência”.

 

 

                                                    LINCOLN CARTAXO DE LIRA

                                                       Advogado, administrador e escritor

           

           

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Workaholic

 

             Estranho, né? O termo acima em inglês é usado para identificar aqueles tão viciados em trabalho, que acaba afetando de modo negativo a qualidade de vida das pessoas – com estresse, perturbação psíquica, síndrome do pânico etc.

            Por outro lado, em consonância alguns estudos acadêmicos apontam que a relação entre trabalho e prazer desmistifica essa crença disseminada de que quem trabalha muito padece de uma vida prazerosa e feliz.

            Ora, ora! Estar satisfeito com o que se faz é uma das maneiras essenciais de um ser humano adulto tornar-se saudável, já que o trabalho - que toma a maior parte do dia - certamente tem influência sobre a saúde mental. Por isso, proliferam por aí afora os “guias-minuto”, cujo eufemismo politicamente correto varia conforme a livraria, em categorias como “aprimoramento profissional”, “estratégia corporativa”, “psicologia empresarial”, “recursos humanos” ou “biografia de negócios”.

            Alto lá! Trabalho só tem um sentido: ter uma vida melhor hoje, e não amanhã. O amanhã pode não chegar, por isto aproveite hoje. Não podemos trabalhar ao ponto de perdermos de vista nossos desejos, anseios e necessidades. Onde leva o homem a ser tragado e engolido – no corpo, na alma e nos seus nobres valores intrínsecos – pela ambição, ganância e outras figuras típicas de uma competição espúria.

            No duro mesmo não precisa fazer ginástica intelectual para entender que o mercado já valorizou muito o perfil profissional do workaholic. Varia muito de empresa para empresa, mas hoje este conceito de trabalhar além da conta está totalmente fora de moda, a tendência é que cada vez mais todos se mobilizem em prol da qualidade de vida, sem abdicar da lucratividade e competitividade. Mesmo porque, não é o horário que valoriza se alguém é bom profissional ou não, pelo contrário.

            Certa feita, disse o hilariante jornalista José Simão “...e uma coisa é categórica: ninguém pode chamar o Fernando Beira-Mar de vagabundo, e sim, de um grande workaholicismo. Porque ele trabalha até preso, para administrar às suas atividades de narcotráfico. Pois, uma coisa organizada no Brasil é o crime organizado”.

            Brincadeira à parte, sem querer fazer trocadilhos baratos, todo trabalho tem seu encanto. Eu cresci (como muita gente) aos trancos e barrancos, à custa de um sacrifício pessoal gigantesco.

            Uma vida de total dedicação ao trabalho - sem obsessão. Longe de se tornar escravo da vaidade e da futilidade.

 

 

                                              LINCOLN CARTAXO DE LIRA

                                                 Advogado, administrador e escritor