quarta-feira, 27 de outubro de 2021

A pegadinha

 

            Sou da época em que não existia ainda a televisão e nem esses outros trecos tecnológicos pós-moderno. Eis a razão pela qual assistir uma malandragem de “pegadinha” então, nem pensar.

            No insólito consultório odontológico, estava eu lá, aguardando a minha vez para dar início àquele insuportável tratamento cirúrgico. Aguardando também por aquela pergunta já manjada: “Ei, você tá bem?”. E pela ainda mais hipócrita saudação: “Tudo bom?”. Ora, é claro que não – senão, eu não estaria aqui.

            Enquanto assistia na recepção, juntamente com outros clientes, um desses programas televisivos de “pegadinha” - pode parecer oportunista ou de piadas, mas é exatamente o contrário – não é que eu me lembrei de um episódio ocorrido na minha infância, quando morava na cidade do Padre Rolim – Cajazeiras, precisamente na rua Bonifácio Moura. 

            Passava gente pra lá e passava gente pra cá como, de resto, acontece em qualquer calçada. Principalmente, numa cidade do interior em pleno dia de feira livre. Sem mudanças visíveis, sem nuances.

            E eu... confesso agora... descobrira (há tempo) que tinha um plano na cabeça. E esse plano se baseava numa picante “pegadinha”, a exemplo do que aparece hoje. Onde a ideia consistia colocar no meio da calçada um pacote bem arrumado, em papel de presente, contendo em seu interior um frasco de Perfume de Alfazema cheio de urina.

            A bem da verdade, a invenção e a organização dessa tremenda presepada tiveram também a participação da minha turminha (criançada). Com frio na barriga, mal me aguentava nas pernas, não só pela curiosidade como pelo medo do desdobramento que estava para acontecer.

            Não demorou muito para um matuto, vindo de algum sítio da redondeza, mesmo com a pulga atrás da orelha – olhava para trás, olhava para os lados – apanhou a pequena caixa. Mal sabia ele que naquele embrulho se encontrava.

            Abro um parêntese, para dizer que o tal matuto era um tipo original: baixinho, bigodinho quase imperceptível, pele tostada pelo sol, chapéu de palha enterrado até as sobrancelhas, usando uma calça frouxa de brim e um casaco feito de retalhos coloridos.

            Ih... não é que o sujeito caiu direitinho na armadilha.

            Pense numa popa! Que vexame!

            Com uma baita cara de mau, puto da vida, espumando pela boca, totalmente fora de si, saca uma peixeira, e aos berros:

            -Peraí! O que é isso?!

            - Vê, eu sou macho. Cadê o f.p. que fez isso? Eu mato e ainda bebo o sangue.

            Da varanda da minha casa (escondidinho) a tudo observávamos, pra ver o bicho que ia dar – e que deu!!!

 

                                                    LINCOLN CARTAXO DE LIRA

                                                         Advogado, administrador e escritor

 

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Futuro do Palácio Gustavo Capanema

 

            O desleixo na preservação do nosso patrimônio histórico e cultural tem sido uma coisa imperdoável. Ora, é evidente que as cidades devem se modernizar, mas nunca demolir, desfazer, desproteger as nossas identidades patrimoniais, visando apenas o vil metal.

            Isso é um carma, um absurdo. Eu me sinto péssimo diante disso. O assunto é delicado, mas não vejo como possamos furtar-nos a ele.

            É muito importante preservar o patrimônio brasileiro, pelo fato de representar a materialização da nossa história e identidade cultural.

            Valorizar a memória é entender o passado para mudar o futuro. Lamentavelmente, porém, o ministro da Economia, Paulo Guedes, não pensa assim. Não entende isso, ou finge não entender. Uma vez que levará a venda o prédio definido pelo próprio Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) como símbolo da arquitetura moderna brasileira: o Palácio Gustavo Capanema.

            A intenção de vender esse valoroso imóvel é uma ação deliberada contra cultura brasileira. O edifício é um expoente do processo civilizatório nacional. E sua venda seria comparável ao leilão dos palácios do Planalto e da Alvorada, sede do governo federal e residencial oficial do presidente da república.

Como se não bastasse, damo-nos ao “luxo” de assistir tudo isso calado.

E acontecendo em pleno século XXI e tudo é observado com olímpica indiferença.

            Segundo o Iphan, o icônico Capanema é descrito como fruto do encontro de nomes como Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy, Carlos Leão, Ernany de Vasconcelos e Jorge Machado Moreira, sob a consultoria de Le Corbusier. A sua construção é uma síntese do talento brasileiro e condensa um projeto de futuro, saído das mentes brilhantes dos seus arquitetos.

            Pelo site oficial do governo está assim anunciado: “Pela primeira vez no Brasil, um edifício reuniu as principais características da arquitetura moderna, com o uso de pilotis, planta livre, terraço-jardim, fachada livre e janelas em fita. Somados a eles, também estiveram Burle Marx, Cândido Portinari, Bruno Giorgi, Adriana Janacópulus, Celso Antônio e Jacques Lipchitz, consolidando o time responsável pelas artes integradas, com pinturas, esculturas e paisagismo”.

            Infelizmente, o plano de Paulo Guedes, estúpido e obscurantista, é fazer do Brasil um país que não mais se reconheça, sem memória nem medida da nossa singularidade criativa.

            Num país de memória curta, temos o dever de reavivar o nosso patrimônio cultural, não deixando que as nossas raízes históricas desapareçam.

            Cumpre, ademais, sublinhar: sou a favor da venda de imóveis subutilizados em benefício à sociedade, desde que seja com critério e sapiência.

            Que o Capanema seja o símbolo da nossa resistência e da nossa sobrevivência. A lei e o bom senso não apontam outro caminho.

            Patrimônio nacional, não tem preço! Não se vende!

 

 

                                           LINCOLN CARTAXO DE LIRA

                                                        Advogado, administrador e escritor

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Aldemaro Campos

 

            Sempre detive, como conceito, de que a Família é o lugar onde o amor deveria ser praticado, vivenciado, desfrutado em toda sua essência.

            Inspirado nesse diapasão, confesso que jamais apagarei de minha mente a figura extraordinária do Dr.Aldemaro Campos (meu sogro). Era um homem inteligente, íntegro,  grande conhecedor de nossa literatura, e um grande visionário. De hábito simples (até demais). Vivia uma vidinha pacata, típica ao homem do campo.

            Depois de um longo expediente, não de sua Repartição Pública (Procuradoria do Estado), mas de suas atividades na fazenda, chegava em casa exausto, sujo, amarrotado, malcheiroso, moído e monossilábico, mesmo assim, não deixava de dirigir um gesto de atenção e de cordialidade as pessoas.

            Sempre se queixava da vida moderna: estresse, trânsito, correria, insegurança, colesterol, triglicérides etc.  Não era adepto a nostalgia esquizofrênica de seu tempo de mocidade. Dizia que o ser urbano enfrentava uma crise de referências.

            Entre tantos bate-papos que tivemos juntos, não me esqueço quando ele disse que todas as criaturas nascem flexíveis para morrerem rígidas. Donde a flexibilidade era discípulo da vida e a rigidez, da morte. Exemplificava-se com maestria essa teoria através da velha história do carvalho e do junco (plantas) que enfrentam a tempestade: o primeiro, por ser firme, quebra-se e morre. O segundo, maleável, sobrevive.

            Meu coração tem por essas lembranças, reais sentimentos de alegria, saudade e felicidade.  Mormente, as histórias ingênuas contadas por Dona Salete (como dizem por ai, a sua “cara-metade”, a “tampa da panela”) sobre a estonteante Maria Amaral - sua parenta.

            Não sei até hoje se tais narrativas eram reais ou de ficção. Ressaltando, qualquer semelhança com seus personagens vivos ou mortos teria sido mera coincidência.

            E mais: nessas histórias contadas por Dona Salete, sobre essa criatura indefectível, pareciam peças de Shakespeare por tratarem de temas universais, tipo traição, paixão, inveja, ódio, caridade etc.

            Quando estava em regime de inspiração total, Dona Salete (espécie de detergente d'alma) brilhava com umas histórias (sem fim) didática e empolgante sobre as travessuras trepidantes dessa tal Maria Amaral. Com vestígio de humor, ou de ironia, vinha lá Dr.Aldemaro com sua tirada: “Eeeiita!!!   Boa...  Boa...  Muito boa!!!   Já terminou???

            Por isso, todas às vezes que vejo um político tentando se defender (com histórias mirabolantes) nos embaraçosos escândalos de corrupção, sinto a falta da presença do Dr.Aldemaro, com sua maldita lealdade inabalável, para lhe sapecar: Chega... Chega de Maria Amaral!

           

                                                   LINCOLN CARTAXO DE LIRA

                                                    Advogado, administrador e escritor   

 

 

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

A Constituição Cidadã

 

            Muito se falou - e ainda se fala – que a Constituição de 1988, chamada pelo grande Ulisses Guimarães de Constituição Cidadã, é realista, rica em contradições e ambiguidades, economicamente desequilibrada e anacrônica, excessiva em matérias e detalhamentos, mas repleta de lacunas. Que, por conseqüência, provocou o maior desastre fiscal da história brasileira, levando inevitavelmente a disparada do déficit público, da dívida interna e da carga tributária.

            À luz disso, aspas para o ex-presidente Sarney: “Logo, logo se viu a Constituição Cidadã criava mais direitos que obrigação, mais despesas que fontes de recursos. Um dos efeitos danosos foi à necessidade de emendá-la continuadamente. A cada emenda, o governo se torna refém da parte menos nobre do Congresso”.

            Não precisa ser um craque com estudos na Sorbonne - se arvorando como intelectual - para não reconhecer muitas virtudes de nossa Constituição. A mais abrangente de todas, trouxe avanços notáveis em campos como dos direitos e das garantias individuais, liberdades públicas, meio ambientes, fortalecimento do Ministério Público, regras de administração pública, planejamento e orçamento, nas cláusulas pétreas.

            É consabido, entre os reconhecidos avanços, as eleições diretas (através da força do voto) em todos os níveis e com voto universal, inclusive de analfabetos e menores de 16 anos.

            Não resta dúvida que aperfeiçoamentos robustos são necessários e urgentes, como a reforma tributária.

            De outro lado do front, não tenho dúvida: o governo dos presidentes que sucedeu a essa Carta Magna fala de liberdade e democracia, em instituições fortes e livres, mas age em sentido contrário, na mão inversa. Daí o retrocesso e não o progresso do que foi conquistado.

            E veja: num país onde a esperteza passou a ser chamada de competência – segundo o empresário Antonio Ermírio de Moraes -, há ainda um longo caminho a ser percorrido para eliminar injustiças gritantes, como a existência de crianças e jovens vítimas de pobreza, vivendo à margem da sociedade. Há, também, a necessidade de eliminar vícios tradicionais que são causas de desigualdade regional e social.

            Não se trata da desejável fórmula dos freios e contrapesos pensados por Montesquieu há 270 anos. O Congresso não confia no Poder Executivo, que não confia no Poder Judiciário, que não confia em ninguém.

            Aliás, diga-se de passagem, é hora de ser menos visionário e mais futurista.

            É preciso aproveitar a experiência desses 33 anos para livrar a Carta dos erros e prescrever os acertos, resgatando o País para a modernidade.

 

                                           LINCOLN CARTAXO DE LIRA

                                         Advogado, administrador e escritor