quinta-feira, 29 de abril de 2021

Dois de Ouros

        É sabido, comumente, que os apelidos são oriundos pelo comportamento das pessoas, por suas características físicas, por outra qualquer situação inusitada ou hilariante. 

            O que se vê hoje, é que essa prática de botar apelido quase não mais existe. Deve-se (acredito) aos novos tempos: é só computador, jogos eletrônicos, muita individualidade, frieza e menos emoções. 

            Quando criança, lá pras bandas de Cajazeiras, tinha um senhor, prestes a se aposentar pela prefeitura desta cidade, na condição de guarda municipal, cuja incumbência funcional era vigiar tenazmente o Grupo Escolar Monsenhor João Milanez. 

            Essa figura parecia uma autoridade constituída (a boa autoridade). Ou melhor: se sentia como autoridade fosse, enfronhado em sua farda de caqui com uma fita verde vertical na calça, sapatos pretos já bem desgastados (ao estilo Vulcabrás), quepe ostentando a insígnia da edilidade municipal. Completando a sua indumentária, o inseparável cassetete, que o conduzia na cintura como uma verdadeira arma de fogo. 

            Ademais, movia-se desajeitadamente como se estivesse desconjuntado. Baixinho, magro, pele tostada pelo sol causticante do sofrido sertão. Isso, numa época, que se curtia a tradicional peladinha. 

            Foi nesse cenário bucólico, utilizando de nossas travessuras para chamá-lo de “Dois de Ouros”. Era um deus-nos-acuda. E quanto mais se raivecia o apelido pegava. 

            - Tenho vontade de matá-los – vociferava. 

            Ante o potencial de nitroglicerina do nosso guarda, esbravejava numa nostalgia da pornochanchada, com toda carga de palavrões. Cada vez que gritávamos “Dois de Ouros”, isso provocava um arriscado rastilho de pólvora. 

            Desapercebidamente, um belo dia fui apanhado por ele. Formou-se aquele bafafá, e o indefectível “Dois de Ouros” não quis conversa. 

            - Seu guarda, juro que só queria brincar. 

            Retrucando-me: 

            - Vou lhe fazer em picadinhos! 

            Uma “justa vingança”, como se houvesse vingança justa, sacolejando-me, de um lado para o outro, para cima e para baixo, o suor me escorria em bicos pelo rosto, depois me agachei e consegui escapar de suas garras. 

            Sob ameaça de botar a boca no trombone, após vê-lo tomando banho (completamente nu) debaixo da caixa d’água do educandário, observei que o mesmo detinha uma deformação em seus testículos (saco escrotal), esbaforiu: 

            - Seu moleque cabeludo! 

            - Peraí... vou te pegar, seu filho da...! 

            A partir daí me dei conta de algo: tenho procurado fazer o bem, não sei se faço, mas me esforço, mesmo diante de certas brincadeiras. 

            Hoje: quando vejo as praças, as escolas, os logradouros literalmente abandonados e/ou pichados, eu sinto  nostalgia do guarda “Dois de Ouros” para defender, de forma intransigente, o nosso patrimônio público. 

 

                                                     LINCOLN CARTAXO DE LIRA

                                                                     Advogado, administrador e escritor.

 


quarta-feira, 21 de abril de 2021

Cenário econômico

                Como diz Cordeiro, filósofo e amigo predileto, em referência à crise atual: “Saltar do penhasco parece mais fácil”. 

            Todo mundo está “um pote até aqui de mágoa”. Infere-se daí a razão frenética desse desespero: a crise sanitária (Covid-19) e a crise econômica. 

            De um lado, as perdas de conhecidos pelo vírus e o medo de ser contaminado. De outro, as contas a pagar, a cobrança dos fornecedores e o medo da falência. 

            Quando eu visitava o Rio de Janeiro, dava uma passada na livraria São José, sebo mais antigo dessa cidade, fundada há 85 anos, recentemente teve o final triste – fechou as portas. Ora, por que livrarias, logo elas, iriam escapar à destruição que atinge o país inteiro? É a vida – ou a morte – que segue. 

            Hoje olho para minha estante e ainda vejo alguns livros que comprei nessa famosa livraria. É como se continuasse viva em cada um deles.  

É tudo muito ruim em termos de avanço econômico. E ninguém está disposto a naufragar abraçado perante tal situação. Ou melhor: consumido por alguma medida de conteúdo embalado e estragado.  

            É visível que as medidas de restrição são extremamente necessárias, dado o problema sanitário que estamos enfrentando com a Covid-19. Mas de fato, assusta-me muito a ausência de um plano concreto e robusto acerca dos impactos econômicos que este tipo de restrição acaba gerando nas diversas esferas da sociedade. Sem esquecer o pequeno e médio empresário, com novas restrições devem aumentar o desemprego e falência. 

            O falatório destrambelhado do governo só faz atrapalhar. Digo: fazer restrições meia boca, para inglês ver, é muito pior, pra economia, do que um lockdown bem feito e de curta duração (de 20 a 30 dias). Medidas paliativas só alongam a crise causada pela pandemia. 

            Ademais, o governo não providenciou um programa de ajuda eficaz para os pequenos e médios empreendedores, os mais atingidos pela pandemia. No que tange às agendas de costume e de combate à desigualdade, o quadro é ainda mais desolador, pois tem havido retrocesso. 

            Como vêem, eu, com minha reflexão habitual, percebo que o País está sem liderança exatamente na hora em que mais precisamos. Estamos mal. A população encontra-se amedrontada, enlutada e sofrida; nossa economia anda para trás; o Estado está endividado; abandonamos parcerias históricas com vizinhos e perdemos o respeito de nações amigas. Agora todos nós pagamos o pato. 

            Espero que o presidente Bolsonaro tenha sensibilidade e espírito público para reconstruir a economia, governar para todos, unir o país e curar a alma da nação. 

 

                                                                                                                                                                                                                 LINCOLN CARTAXO DE LIRA 

                                               Advogado, administrador e escritor. 

             

 


quarta-feira, 14 de abril de 2021

A inesquecível curuba

 

            Quase trivial: num dos semáforos da Av. Ruy Carneiro depararmos com crianças tentando imitar alguma técnica circense, visando obter para si algumas parcas moedinhas. E sob o olhar pidão e triste ficamos até embatucado diante da campanha institucional: “Não dê esmola, dê oportunidade”.

            Lembro-me bem, e parece ter sido ontem, ao ver uma dessas crianças se contorcendo com uma danada de coceira sem fim, traz à memória, lá pelos meus 12 anos, na cidade de Cajazeiras, quando fui apanhado por um surto dessa “coçagem”, chamada estranhamente de curuba (afecção cutânea contagiosa, parasitária).

            Tal coceira era de um efeito tão inusitado e devastador. Começou pelas coxas, depois passou para as virilhas, espalhou-se em direção às nádegas, dando uma escapada para os órgãos genitais.

            Verdade, quem me via se coçando caia na gargalhada. Falava: “E aí meu irmão, o que está acontecendo?”.  Hoje, vejo que o velho Ataulfo Alves tinha mais do que razão. A maldade dessa gente é mesmo uma arte.

            Não se tratava, portanto, de uma comichãozinha qualquer. Na viagem pela parte anterior do tórax era uma fricção intensa, que me levava a chorar e a se coçar até se ferir e sangrar.

            Mesmo submetendo-me a um rigoroso tratamento com ervas medicinais, entre elas o sumo das folhas do melão Caetano, continuei travando (por dias) aquele combate inútil (em que pese o hercúleo esforço) entre o desejo de não sofrer e a vontade louca de se coçar, mais parecendo uma volúpia compulsiva.

            -Eeeiiita!!! Onde você pegou isso, meu filho??? – Perguntou assustada a minha querida mãe, dona Aila.

            Essa questão vagueava no inconsciente. Quando de repente, assim mesmo, não mais que de repente, recordei-me que no dia anterior um “fator extra-campo”, como se evoca no futebol, ao participar de uma tradicional pelada, no decorrer da partida, tive o meu calção rasgado, e para continuar jogando recorri ao meu coleguinha de turma chamado Griguilim (apelido) para que ele me emprestasse o seu calção. Na hora, gentilmente, fui atendido. E ele ficou com o meu, enquanto terminava a partida.

            À guisa de registro, o nosso Griguilim, de estatura diminuta para sua idade, desengonçado, figura carismática que, em vão, procurava dar um show de acrobacia, como mascote, à frente de nossa banda marcial do colégio Monsenhor Constantino Vieira. Pois, antes de começar o desfile a todos os pulmões berrávamos o Hino da Bandeira.

            Voltando à curuba. E pelo que ainda consigo lembrar, foi, sim, o inesquecível e terrível calção que me provocou todo esse aperreio de nitroglicerina pura.

            Em tempos liberais e modernos, era interessante que ocorresse um pequeno surto dessa coceira na casa do Big Brother, a fim de satirizar já o debochado ambiente. Como diria aquele colunista estonteado: “Seria uma loucuuuuura!”.

 

                                           LINCOLN CARTAXO DE LIRA

                                                      Advogado, administrador e escritor

 

           

quinta-feira, 8 de abril de 2021

A mulher do sueco

            O escritor, jornalista e cineasta Fernando Sabino (1923-2004) teve uma vida literária produtiva. Publicou crônicas, contos, romances, além ser músico (saxofonista).

            Não por outro motivo, Carlos Drummond de Andrade afirmou que o referido escritor havia achado “a palavra leve, a frase limpada, o ritmo discreto da prosa, que só se alcança quando se consegue atirar para longe todo artifício e brilho aparente”.

            Um passeio pelo mundo literário, eu pincei dos meus guardados a minha crônica predileta de Fernando Sabino chamada “A mulher do sueco”, que aqui pelo licença (faço questão) de publicá-la. Vejam a seguir.

            Contaram-me que na rua onde mora (ou morava) um conhecido e antipático general de nosso Exército morava (ou mora) também um sueco, cujos filhos passavam o dia jogando futebol com bola de meia.

            Ora, às vezes acontecia cair a bola no carro do general e, um dia, o general acabou perdendo a paciência, pediu ao delegado do bairro para dar um jeito nos filhos do sueco.

            O delegado resolveu passar uma chamada no homem e intimou-o a comparecer à delegacia. O sueco era tímido e, pelo aspecto, não parecia ser um importante industrial, dono de grande fábrica de papel (ou coisa parecida), o que realmente ele era.

            Obedecendo à ordem recebida, compareceu em companhia da mulher à delegacia e ouviu calada tudo que o delegado tinha a dizer-lhe, o seguinte:

            -O senhor pensa que só porque o deixaram morar neste país pode logo ir fazendo o que quer? Nunca ouviu falar numa coisa chamada AUTORIDADE DESCONSTITUIDAS? Não sabe que tem de conhecer as leis do país? Não sabe que existe uma coisa chamada EXÉRCITO BRASILEIRO que o senhor tem de respeitar? Que negócio é este? Então é ir chegando assim  sem mais nem menos e fazendo o que bem entende, como se isso aqui fosse a casa da sogra? Eu ensino o senhor a cumprir a lei, ali no duro: dura Lex! Seus filhos são uns moleques e outra vez que eu souber que, andaram incomodando o general, vai tudo em cana. Morou? Sei como tratar gringos feito o senhor.

            Tudo isso com voz pausada, reclinado para trás, sob o olhar de aprovação do escrivão a um canto. O sueco pediu (com delicadeza) licença para se retirar. Foi então que a mulher do sueco interveio:

            -Era tudo que o senhor tinha a dizer ao meu marido?

            O delegado apenas olhou-a espantado com o atrevimento.

            -Pois então fique sabendo que eu sei tratar tipo como o senhor. Meu marido não é gringo nem meus filhos são moleques. Se por acaso incomodaram o general, ele que viesse falar comigo, pois o senhor também está nos incomodando. E fique sabendo que sou brasileira, sou prima de um major do Exército, sobrinha de um coronel e FILHA DE UM GENERAL! Morou?

            Estarrecido, o delegado só teve forças para engolir em seco e balbuciou humildemente:

            -Da ativa, minha senhora?

            E ante a confirmação, voltou-se para o escrivão, erguendo os braços desalentados:

-Da ativa, Motinha! Sai dessa...

Enfim, eu até me penitencio com a obrigação de reabastecer minha modesta biblioteca com as obras desse extraordinário escritor. Peço Perdão!

 

                          LINCOLN CARTAXO DE LIRA

                                  Advogado, administrador e escritor

                                  

 

           

            

quinta-feira, 1 de abril de 2021

O cemitério chamado Brasil

            Acredite se quiser: em vários países do mundo o serviço sanitário está indo atrás dos brasileiros como se fossem leprosos. Pois é. Eles estão sendo caçados como se fossem terroristas sanitários. É patético, é vergonhoso! 

            As fronteiras e os aeroportos estão se fechando para se proteger do inimigo número um do mundo. Ninguém mais vai querer vir ao Brasil, a turismo ou negócios. Nenhum país vai permitir que os brasileiros, ou os produtos brasileiros, entram lá. Somos o maior excluído do planeta. E os culpados pelas “decisões imbecis” exibem com orgulho esse título escabroso.  

            Fala-se até no genocídio em curso no País que se alimenta de ignorância, de mentiras e de falhas brutais de lógica – um fóssil ideológico perdido no tempo. 

            Lamentavelmente trabalhamos cinco meses todos os anos só para pagar impostos federais, estaduais e municipais. Revolta-me saber que somos o país com o menor índice de retorno de bem-estar à sociedade do planeta e ainda temos que suportar um presidente que nega vacina para todos.          

            É vero. No atual ritmo de vacinação teremos mais de 1 milhão de óbitos até que todos sejam vacinados, e eu e os demais cidadãos corremos risco de não chegarmos vivos ao final da pandemia. 

            Para um especialista social, o futuro do Brasil depende da sociedade brasileira se unir contra o inimigo comum. Só teremos alguma chance de ganhar a guerra com a união de todos em prol de um projeto de salvação nacional, que inclui: sociedade, profissionais da saúde e autoridades governamentais. 

            Trocando em miúdos, bem miudinhos, a vida não é uma coisa. Vida é o bem mais precioso que alguém pode ter, porque é por meio dela que a humanidade se materializa e evolui. 

            Sou um eterno otimista por natureza, porém titubeei quando Pazuello discursou como um corretor imobiliário que vendia um apartamento com um ano de atraso. “Vou entregar a ele um ministério estruturado, organizado, funcionando e com tudo pronto”, disse, em referência ao sucessor. E fez questão de dizer que pouca coisa vai mudar daqui por diante: “O doutor Marcelo Queiroga reza pela mesma cartilha”.  

            Na leitura mais superficial, o quadro da pandemia é dramático. A hora é de lidar com o ônus das medidas impopulares. Não dá para tomar decisões só baseada no critério de lotação de UTI, pois a maioria dos pacientes nesses leitos está morrendo. A gente tem que evitar que as pessoas adoeçam. E, sem vacina, sobram poucas opções. 

            O Brasil é hoje o epicentro da tragédia mundial. Outras variantes podem estar surgindo agora, e não sabemos da existência delas ainda. E com mais mutações, aumenta a chance de as variantes serem mais letais. 

            Ao fim ao cabo, o Brasil está doente, literalmente. E está ameaçando o mundo. Até quando vamos aceitar calado a transformação do Brasil num enorme cemitério?   

            Faltou sublinhar: que o expoente (dono) da caneta bic se cuide, porque a cada passo em falso, fica mais difícil o seu retorno como mandatário desta nação. 

            Chega de vilipêndio à vida! 

 

                                       LINCOLN CARTAXO DE LIRA 

                                                  Advogado, administrador e escritor