quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Vou deixar de ser burro

            Foi vendida a ideia de que o caminho da felicidade passa pelo consumo, pela aquisição da roupa de grife, do carro do ano, do último modelo de celular ou do eletrodoméstico. É o consumo e o acúmulo de bens sem limite e nunca saciados que impulsionam esse modelo suicida de desenvolvimento.
            Emblema disso é que, hoje, mais da metade da população (54%) tem algum carro. O Brasil privilegiou a indústria automobilística, facilitou a compra de veículos, e a classe média aumentou em tamanho e poder de consumo. Todos acreditaram que chegariam ao paraíso, e terminaram presos no congestionamento.
            Esse ambiente torna-se o cidadão contaminado pela felicidade cosmética. No fundo todos somos um pouco burros: no amor, nas mancadas com os amigos, nas compras por impulso, nos filmes que escolhemos sem ler a crítica, quando nos sentimos espertos e achamos que isso é nossa exclusividade, quando acreditamos em soluções mágicas para emagrecer, combater a calvície, ficar rico etc. Mas pior que burro consciente é um iludido. Chegou a hora de dizer (muito apropriadamente) “vou deixar de ser burro”.
            Meu saudoso sogro, Dr.Aldemaro Campos, foi um homem que sempre enxergava mais além. Sobre tal assunto, frequentemente, ele dizia: “Olha, a desgraça do mundo é a vaidade”.
Essa espécie de cachaça da vaidade está intrinsecamente ligada ao consumo extemporâneo, contaminado por uma fossa de mini shopping, distúrbios de autoimagem e materialismos extravagantes.
            Não é surpresa, quem mais fica engarrafada nas ruas é a classe média, segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) – face ao consumo desenfreado pela compra de veículos, mais por desejo do que por  necessidade. Pesquisa revela que os
muito pobres e os muito ricos gastam menos tempo no deslocamento casa-trabalho do que a classe média. Os ricos, porque podem morar perto do trabalho – alguns usam até helicópteros. Os pobres sem dinheiro pagam a passagem, tendem a se restringir a trabalhar bem perto de onde moram ou acordam às 4 horas da manhã para evitar congestionamento.
            Vou um pouco mais longe e digo que da porta para dentro de casa, a classe média melhorou muito de vida. Mas o espaço público não acompanhou a melhoria. A prova disso é o engarrafamento diário de nossas cidades. E para mudar esse cenário pavoroso, só taxando a circulação de carros em áreas mais conflagradas. Não tem escapatória, acreditem!
            Eu poderia me estender numa argumentação apocalíptica sobre esse desafio real. Então, basicamente, é isso: ou o governo muda a sua estratégica da política de consumo ou as grandes cidades brasileiras vão se transformar em bolsão de problemas estruturais.

                                        LINCOLN CARTAXO DE LIRA
                                                          Advogado, administrador e escritor. 


terça-feira, 17 de agosto de 2021

Dor de Cotovelo

            Já revelei aqui neste espaço que uma das músicas mais bonita da MPB é aquela composta por Nelson Motta e cantada pelo Lulu Santos, que diz que na vida tudo passa, tudo sempre passará, como uma onda no mar. No entanto, para o grande compositor gaúcho e boêmio Lupicínio Rodrigues, isso não é verdade, é uma deslavada mentira.

            Valendo-se de sua “dor de cotovelo” que tanto lhe torturava e que não se libertava (de vítima) dos amores e desamores, de paixões e desilusões avassaladoras, fez transportar para as canções essa melancolia como bem é retratada em “Nervos de aço”: “Você sabe o que ter um amor, meu senhor/Ter loucura por uma mulher/E depois encontrar esse amor, meu senhor/Nos braços de um tipo qualquer”. Como se vê, um caldeirão pulsante de amargura.

            O cenário é o mesmo: o cara entra no bar sozinho e magoado, ferido, pisado, contundido amorosamente. Na cabeça, a amada, “aquela ingrata”, que o abandonou por outro (Ricardão!). Como não poderia deixar de ser, pede um chope, um uísque ou uma aguardente, ficando por ali durante horas, remoendo a tristeza pela separação. Sem tergiversação, um autêntico folhetim de libelo “cornista”.

            Ninguém soube expressar como Lupi (carinhosamente como era chamado) a mais acachapante e abjeta “cornitude”. Diferentemente do Noel Rosas, Oreste Barbosa e Chico Buarque que escreveram brilhantes canções sobre o “descorno”. Ele era de enfiar o pé na lama e se expor sem restrições suas bizarras mágoas.

            O barato de suas canções é o texto musical. Verdadeiro oceano de trivialidades amorosas, puxada pela filosofia “botequinesco” e da dramaturgia diária da boemia. Um complexo emocional em que se mistura “dor de corno”, saudade, algum desejo de vingança, muito amor mal cicatrizado.

            Por isso, que se tornou um dos ícones da fossa e da desilusão. Cujo tema de suas canções, invariavelmente baseado em fatos reais, era centrado na danada da traição. Veja a sua manifestação de revolta nos versos de “Nunca”: “Nunca/Nem que o mundo caia sobre mim/Nem se Deus mandar/Nem mesmo assim/As pazes contigo eu farei”.

            Tinha orgulho de ser boêmio. Costumava dizer “É melhor brigar junto do que chorar separado”. Nas suas desventuras com as mulheres que desfilaram pela sua vida, levou-o a compor e a gravar umas 150 canções (marchinhas de carnaval e sambas-canção), músicas que expressavam sentimentos de um amor perdido.

            Outro catedrático da boemia, Vinicius de Morais, confessava que “Todo poeta só é grande se sofrer”. Assim, em 1974, Lupicínio Rodrigues, aos 59 anos, conhecido pelo estilo bordão “dor de cotovelo”, morreu como viveu: do coração.

 

 

                                                LINCOLN CARTAXO DE LIRA

                                                      Advogado, administrador e escritor 

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Traquinice de estudante

             Naquela época de colegial, puxando pela memória, no final da década de 1960, lá na cidade de Cajazeiras, estudante do Colégio Monsenhor Constantino de Vieira, tendo como diretor o inesquecível Padre Vicente (conhecido apenas assim, sem sobrenome), reverendo sisudo, totalmente careca, abria a boca sem mostrar os dentes. Com sua batina preta surrada, quase arrastando pelo chão, baforando, de vez em quando, seu charuto cubano (legítimo) ao velho estilo do cineasta Alfredo Hitchcock.

            Era absurdamente brabo. Um tsunami de ignorância. Pense no medo que todos nós tínhamos de sua presença. Como não bastasse toda obrigação de praxe dos estudos, tínhamos ainda que ir pra missa, fazer penitência, confessionário, hóstia, e mais: buscava ele, incansavelmente, nos transformar em verdadeiros santos do que um profissional bem-sucedido de amanhã.
            Foi diante dessa “criatura de Deus” que ousei provocar, enfrentar a sua terrível paciência e humor.
            Nesses idos, época em que se vivia uma vidinha pacata, estudava no turno da tarde, quando resolvi, por traquinice, levar para a sala de aula um pequeno recipiente (latinha cilíndrica de alumínio) cheio de um
pozinho preto chamado exoticamente de tabaco. Ora, então, utilizado pela minha mãe D.Aila como remédio no descongestionante nasal ou quiçá no combate a inflamação na mucosa nasal.
            Por incrível que pareça e nada que se pareça é incrível que uma
das características fortes dessa fórmula (remédio) é que ao inalar com certa intensidade causa uma série de espirros sem fim. Que incomoda bastante levando até a chorar e a tossir.
            Imagine o fuzuê numa classe com 50 alunos. Onde a maioria espirrava ao mesmo tempo. Uma comédia. A rigor, uma tragédia. Obviamente, a professora interrompeu a sua aula e foi chamar logo quem, o indomável padre Vicente, para as providências sumárias ao inapelável castigo.
            Sim! Tratando-se desse nosso diretor e religioso, não poderia vir coisa pior. E na lengalenga de quem foi e quem não foi o responsável por tamanha astúcia, sem pestanejar julguei, por bem, para não prejudicar todos os colegas, me antecipar confessando-lhe espontaneamente a prática desse delito estudantil.
            Num misto de medo e apreensão, levando-me quase a um “blecaute mental”, fiquei na hora tremendo, ofegando, suando, aguardando a minha sentença.
            E de mais a mais, apresentação espontânea e confissão da autoria, eu imaginava que me valesse atenuante à peça condenatória. Nada! Que nada! Ledo engano.
            Ou seja: afora o fuzilamento verbal, fui penalizado (trânsito julgado, ali mesmo) com a suspensão por três dias do colégio e, com agravante, ainda tive que ficar trancado (a sós) por quatro horas na pequena sala de Estudos de Anatomia (com pouca luz), sob vigilância de uma aterrorizante caveira humana.
            Posteriormente, já morando em João Pessoa, soube que a morte veio e o levou, sem que eu pudesse relatar a esse grande educador, Padre Vicente, tal lembrança viva dentro de mim como um pedaço gostoso de meu passado. 

                                                          LINCOLN CARTAXO DE LIRA
                                                        Advogado, administrador e escritor.


terça-feira, 3 de agosto de 2021

Revolta em Cuba

 

             Para mergulhar na história, estive em Cuba há 11 anos. Constatei que as pessoas tinham medo de falar, desconfiadas. Desconheciam a realidade mundial, informações somente pelas TVs estatais, controladas.

            Um absurdo sem tamanho. Uma pobreza generalizada.  Não tinham passaporte, presos no seu próprio país, não podiam sair. Avanço na saúde é uma lenda. Embora exista uma rede básica de saúde adequada, herança soviética. No mais, tudo sucateado, aparelhos velhos amarrados com arame.

            Tudo lá funciona na base do improviso – a famosa gambiarra. No ranking de Liberdade Econômica, de 178 países, Cuba está em 176, à frente apenas da Coreia do Norte e Venezuela.

       Com a onda de protestos que inundou recentemente às ruas de Cuba, desde as cidades do interior até Havana, os manifestantes foram espancados, muitos foram detidos, outros estão desaparecidos, repórteres foram sequestrados, uma youtuber foi presa ao vivo enquanto dava entrevista.

Não é só constrangedor, é vergonhoso e humilhante. Após anos de silêncio, os cubanos saíram às ruas para protestar contra o regime comunista. Poucas vezes ocorreram reações desse porte desde que a ditadura foi implantada, em 1959.

            Infelizmente, a esquerda brasileira, de modo geral, não seguiu o exemplo do premiado escritor José Saramago, quando rompeu com o desastroso regime cubano, dizendo: “Até aqui cheguei”.

            Há, sem dúvidas, boas razões para tal. Não fosse o tirânico punho de aço da ditadura cubana, praticamente toda a população daquela degradação já teria fugido para algum país onde pudesse ser livre.

            Como se sabe, não há democracia em Cuba. Quem conhece o país sabe e vê o empobrecimento e a insatisfação da população, que sofre com o autoritarismo governamental. Sou testemunha ocular dessa triste realidade.

            Como diz lá na minha terra natal, Cajazeiras, esse regime não vale nem meio pequi roído. Alguém precisa sacudir o cinismo desse regime. As ditaduras acham possível calar as pessoas desligando-as do mundo – mas não, as coisas mudaram.

            Escarafunchando os registros da minha viagem à Cuba, apurei que o seu  Partido Comunista tem 700 mil filiados, numa população de 11 milhões. Os “revolucionários” não são atraídos por elevados ideais socialistas, mas por benesses materiais que se estendem de empregos no setor público à garantia de vagas nas universidades.

            Pelo que constatei, mais cedo ou mais tarde, atual revolta popular cubana iria ocorrer. Não há futuro para um regime que caducou e vai cair podre.

            O povo de Cuba clama a Deus.

 

  

                                     LINCOLN CARTAXO DE LIRA

                                                Advogado, administrador e escritor